quarta-feira, 9 de março de 2016

As "desconhecidas" Artes Marciais Filipinas - VII

  • AMPLITUDE DO CONHECIMENTO

Como informamos ao longo das postagens, o berço do Kali/Arnis/Eskrima é o complexo arquipélago filipino, que abriga populações de culturas e costumes diversos. Logo, o que não falta são “estilos” e peculiaridades entre as diversas Escolas. Muitos aspectos em comum também não faltam. Impossível conhecer todas com propriedade? Provavelmente, sim. Seria trabalho para mais de uma vida inteira!

O traço que une as múltiplas vertentes é o fato de todas serem baseadas no uso de armas. As diversidades, porém, são muitas. Alguns sistemas consideram que há diferenças entre o uso de bastão e de lâmina longa; outras tratam ambas as armas sob o mesmo prisma. Umas assumem que sua tecnologia nasce da faca e se desdobra em diversas técnicas, inclusive desarmadas. Outras se valem de chutes altos e socos em seu repertório desarmado. Muitas sofreram nítida influência de outras artes marciais, enquanto algumas evoluem sob os princípios originais e mais tradicionais da arte. Algumas admitem aspectos esportivos, outras cultivam a natureza combativa pura.

Em face de tal diversidade, é importante escolher bem. Procuramos, em nossos círculos de treinamento, desenvolver a arte orientados por fontes de sólido conhecimento; legítimos representantes das Artes Marciais Filipinas. Por isso a AMK se acha vinculada ao Pekiti Tirsia Kali, e mais recentemente à PTTA - Pekiti Tirsia Tactical Association, em virtude de características, tais como: originalidade e pureza de conteúdo, extrema eficácia prática, simplicidade didática, objetividade lógica e pela enorme riqueza técnica que traz consigo, sem deixar de citar o caráter francamente evolutivo e criativo, contido no corpo técnico altamente versátil. O Pekiti Tirsia Kali é capitaneado, no mundo inteiro, pelo lendário Grand Tuhon Leo T. Gaje Jr.  Pekiti Tirsia Tactical Association é dirigida por seu fundador, o Tuhon Jared Wihongi.

Visando contínua melhoria da cultura marcial coletiva e individual, AMK promove e participa de seminários de intercâmbio e aperfeiçoamento, com Mestres, Professores e Instrutores cuja contribuição seja relevante e reconhecida nos planos nacional e internacional. Estamos certos de que essa política respeita o legado marcial legítimo de cada fonte viva de conhecimento, e concede aos estudantes, instrutores e professores, ótimas oportunidades de refinamento técnico, ampliação do cabedal marcial, filosófico e vivencial. Afinal, é consenso que o saber, em qualquer área, é um tesouro que cada um carrega por toda a vida. Nas artes marciais isso não é diferente. E as Artes Filipinas são um dos mais ricos tesouros de conhecimento existentes.


  • O KALI DIANTE DO MUNDO E DAS PESSOAS

Em décadas recuadas do Século XX, a migração de Mestres filipinos para outras localidades do planeta, sobretudo para o Estados Unidos e Europa, possibilitaram ao mundo ocidental o contato com essas fascinantes artes, que até então eram praticamente desconhecidas. Isso se deu, principalmente, nas décadas de sessenta e setenta, como consequência de instabilidades políticas pelas quais passavam as Filipinas, notadamente nos tempos da ditadura de Ferdinand Marcos a qual, como sói acontecer sob regimes autocráticos, reprimiu as liberdades e muitas manifestações intelectuais, artísticas e culturais daquela nação. Mas, como ao lado das crises também surgem as oportunidades, essas floresceram noutras terras, onde os Mestres puderam transmitir seu legado com tranquilidade e paz.

Naquela época o mundo aderia com grande entusiasmo à prática de artes marciais, sobretudo as chinesas e japonesas, arrebatado pelas demonstrações, proezas e feitos exóticos de mestres e praticantes. Bruce Lee e Chuck Norris, incontestáveis expoentes dessas artes, amparados pela potência da indústria cinematográfica, figuravam como ídolos e exemplos do “poder” das artes marciais. Os filmes de "lutas" se multiplicavam com espantosa velocidade, sempre contando com muita pancadaria, movida a Karate e Kung-fu... Paralelamente a tal fenômeno penetravam, silenciosa e discretamente, no ocidente “marcializado” por tais artes, os ensinamentos de (até então) desconhecidos Mestres filipinos. No período seguinte, nas últimas duas décadas do Século XX, as sementes plantadas em terras ocidentais frutificaram num intenso movimento de expansão e de busca na direção inversa, marcado por crescente procura, por parte de ocidentais interessados nas FMA, pelos mestres em território filipino, os quais passaram a receber muitos estudantes de varias partes do mundo. Dessa busca nasceu uma multiplicidade de sistemas, com expressões e importâncias diversas no seio das Artes Marciais Filipinas.

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No cinema, as FMA (e também o Pencak Silat) têm se mostrado cada vez mais presentes, em virtude dos movimentos e técnicas que ensejam emocionantes e dinâmicas coreografias, resultando em sequências de luta extremamente impactantes. Dentre os filmes relativamente mais recentes estão a trilogia Bourne, Operação invasão (The Raid - Redemption), The Raid 2, Busca implacável (Taken), Caçado (The Hunted) e o belo Merantau, que bem demonstram a impressionante versatilidade do Kali e do Pencak Silat em suas eletrizantes cenas.

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O Kali, por suas características, cresce e se difunde cada vez mais, como sendo arte marcial eletiva para o treinamento de muitas tropas de elite das mais destacadas forças armadas e policiais do mundo. Por que motivo? Porque o Kali foi feito para funcionar... e funciona muito bem! Em combates aproximados [“close quarters”], em ambientes confinados e situações que exigem luta corpo-a-corpo, em momentos extremos, quando se necessita neutralizar, deter ou eliminar o inimigo de maneira rápida, efetiva e com a menor exposição possível ao dano iminente, o Kali tem se mostrado ímpar, comprovando sua origem essencialmente guerreira. Agentes públicos, como policiais civis, policiais militares, guardas municipais, diariamente expostos a situações potencialmente perigosas, além de outros servidores públicos não ligados a funções diretas de segurança [como fiscais, agentes de trânsito, oficiais de justiça, inspetores e auditores, agentes de inteligência etc], cujas tarefas não permitam ou não comportem o porte de armas de fogo, encontram no Kali um valioso apoio à segurança e preservação da integridade pessoal em situações cuja tensão possa degradar para agressões físicas. Para profissionais de segurança privada se aplica o mesmo, especialmente em face das limitações legais às quais se acham sujeitos. Para praticantes de outras artes marciais, o Kali tem se mostrado, cada vez mais, como disciplina eletiva no aperfeiçoamento das aptidões individuais.

O mesmo se aplica ao público em geral, no que diz respeito a situações extremas que facilmente atingem o cidadão de bem, no cada vez mais violento ambiente urbano, quando diante de agressões fúteis, ataques por mero preconceito, violências motivadas por drogas, álcool ou “stress”, violência sexual, brigas de trânsito, tumultos motivados por fanatismo desportivo, ataques por mais de um agressor, etc, se acha exposto, vulnerável e com a possibilidade de fuga dificultada. O Kali, com seu rico repertório de recursos, atende satisfatoriamente a essas desagradáveis demandas...

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O Kali, e em especial o Pekiti Tirsia, NÃO é (muitos perguntam) um tipo de “defesa pessoal”, como tantos “sistemas” de “defesa” e “combate” que se multiplicam por aí. Esses, em geral são compostos por técnicas “eficazes”, escolhidas isoladamente, extraídas do corpo de uma ou de várias artes marciais e ensinadas como numa cartilha, onde cada ataque corresponde a uma resposta predeterminada ou a um conjunto predefinido de respostas tidas como “corretas”. Não, o Kali NÃO é uma caixa de truques marciais.Também NÃO é um esporte. É Arte Marcial na mais rigorosa acepção do termo; o Kali é completo em cada estilo que verdadeiramente o represente! 

Admitir como reais "sistemas de defesa pessoal” baseadas em fluxos de ataque e contra-ataque preconcebidos é mesmo subestimar a imprevisibilidade do ser humano, induzindo os estudantes a crer que eventuais agressores sejam estúpidos, ingênuos, ou meros autômatos, programados para atacar apenas de maneira que possam ser neutralizados com vitoriosas e “avançadas” técnicas de “defesa", as quais, a bem da verdade, costumam desmoronar diante da realidade da ameaça mortal, que exige ação imediata, decisiva, rápida e consciente; ação essa muitas vezes criativa e necessariamente eficaz, para preservar a integridade física ou minimizar os danos que se possa sofrer. A efetividade no campo da aplicação é o que têm mostrado o incomparável valor das Artes Marciais Filipinas, que são completamente funcionais e aplicáveis em toda sua extensão.

Claro e óbvio que jamais aqui se incentiva a temerária e suicida reação contra uma violência iminente, como num assalto suportado por armas de fogo. Porém, seria hipocrisia e estupidez afirmar que “nunca”, como muito se apregoa por aí, se deve repelir uma ameaça armada. Os “especialistas” que advogam irrestritamente tal posicionamento, por questão de honestidade para com o semelhante deveriam incluir em sua doutrina a seguinte observação: todo roubo carrega em si o potencial latrocínio, o potencial estupro, a potencial lesão corporal gravíssima, o potencial sequestro, etc.

Naturalmente, um pensamento minimamente inteligente não indica reagir, mas AGIR, caso se apresentem condições reais para tal, o que implica em atitude interna, preparação permanente, equilíbrio, ponderação, bom senso analítico e capacidade de admitir (com tranquilidade) quaisquer consequências que possam resultar de um conflito, inclusive a morte, seja alheia ou a própria. Isso demanda treinamento externo e interno (psicológico), num processo de reeducação que constrói segurança concreta, e não apenas a ilusória "sensação de segurança" tão propalada pela mídia. E quando dizemos segurança, não nos referimos apenas à física, mas a todos os benefícios que incidem sobre a personalidade e o caráter, contribuindo para a construção de seres humanos melhores, mais serenos, tranquilos e felizes consigo mesmos, pois nada é mais realizador para alguém que sentir-se realizado como pessoa, que vive em constante crescimento e aperfeiçoamento de seus próprios potenciais.

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Falamos muito sobre coisas desagradáveis, como conflito, combate, etc. Tudo para criar certo contraste e assim deixar claro o que realmente importa, a vida, a proteção, o bem-estar, o respeito e a harmonia que devem prevalecer entre as pessoas. Ora, quanto ao risco de morrer, em qualquer situação que a vida nos apresente, por mais comum que essa situação possa ser, vale dizer que esse “risco” é inerente à condição humana e é diretamente proporcional ao “risco” de viver. Mas a grande maioria das pessoas só imagina eventos poderosos e trágicos determinando a morte. Poucos enxergam com honestidade a alta probabilidade de “bater as botas” por uma intoxicação alimentar, por asfixia de origem alérgica, pela base do crânio partida numa queda no banheiro, pelo gás que exala no silêncio da noite em casa, pelo cão feroz que escapa, por um choque elétrico, pelo vaso de flores que cai de um prédio, por um mero susto, etc, etc, etc. Eventos muito simples e presentes todos os dias. Todos exemplos de ocorrências corriqueiras, que fazem parte das possibilidades da vida, contra as quais contamos com a educação e cuidados pessoais, com o auxílio dos semelhantes e, acima de tudo, com a Misericórdia Divina...

Exemplo da complexidade e da exatidão que deve ter a preparação pessoal para situações extremas de conflito, do tipo “tudo ou nada”, se acha visível na equivocada ideia de que, por “dominar” alguma uma arte marcial ou frequentar “cursos” de defesa “avançada” ou simplesmente por portar uma arma de fogo, alguém se encontra apto a enfrentar (com êxito) um ataque. Tomemos como exemplo um ataque com faca, que é muito comum. Normalmente um “lutador experiente” acaba seriamente esfaqueado, cortado, quando não sucumbe sob a lâmina do agressor decidido. O homem comum, armado de revólver, pode ser que se saia bem em ambiente aberto, principalmente a distância segura, se prever o perigo e sacar sua arma antes, etc..., contando que acertará um ou mais tiros efetivos sob a forte tensão do momento. Agora, imagine-se num carro sendo abordado por uma faca ou objeto pontiagudo, como um gargalo de garrafa, no pescoço; imagine-se no meio de um tumulto, rodeado por várias pessoas agitadas, aproximando-se e afastando-se freneticamente; imagine-se no escuro, na rua, durante um apagão numa grande cidade; imagine-se dentro de um elevador, com alguém tendo um surto psicótico violento; imagine-se agarrado por alguém armado com um simples estilete [ou mesmo desarmado]... Pode ficar muito difícil usar o revólver, não é mesmo...?

No tocante às facas e instrumentos análogos, acreditem: quem ataca com uma faca via de regra está muito determinado, muito motivado, decidido a fazê-lo com sucesso e normalmente logra êxito. Afinal, numa simples comparação, ao atirar nos outros é fácil errar; ao atacar com faca, a chance de erro é mínima, especialmente porque o atacante procura todas as condições favoráveis para investir, para minimizar as resistências e a capacidade de revide por parte da vítima. É por razões assim que as Artes Marciais Filipinas trabalham com manejo de armas desde o início e propõem ênfase no ensino da atitude mental e física adequadas a agir em situações críticas.

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Afirma-se que FMA são artes ímpares em combate. Mas não se diz tal coisa por arrogância, ou por estúpida pretensão de superioridade, ou porque se deseje desmerecer as demais artes marciais, pois todas, sem exceções, são dignas de imensurável valor. O que se enfatiza é que a natureza e a filosofia do Kali são assumidamente voltadas para a sobrevivência, para a abreviação dos conflitos, para o combate e proteção efetiva, quando necessário. Ora, não se tem notícia histórica de que algum povo tenha tido suas questões coletivas de sobrevivência tão comprometidas com artes de combate quanto nas Filipinas, Indonésia, Malásia e vizinhanças próximas. Quando muito, aos demais povos as artes marciais ajudaram nas batalhas e na resistência contra os males de invasores e tiranos. Talvez, na Tailândia se encontre uma exceção, expressa no Muay Boran (arte de guerra, da qual surgiu o Muay Thai) e no Krabi Krabong, extensão armada das artes tailandesas. Mas a verdade é que os “povos dos arquipélagos” foram, em diversas ocasiões, os que tiveram situações vitais, coletivas, massivas e ostensivas, decididas pela força das artes marciais. Basta examinar a história para verificar que no Japão medieval e na antiga China técnicas militares costumavam ser baseadas em artes marciais, mas não eram as próprias em seu todo. Por força de mil e uma imposições e restrições de ordem prática [como a necessidade de treinamento rápido de grandes contingentes], e outros impedimentos de ordem política, legal [eram comuns as restrições às armas para o povo, como na velha ilha de Okinawa, nos primórdios do Karatê há muitos séculos], as artes marciais acabavam relegadas a segundo plano, ou eram reservadas a determinadas classes mais proeminentes. Exemplo disso era a permissão de uso de espadas apenas para os nobres em algumas sociedades. Reforçando o que acabamos de afirmar, as Artes Filipinas e suas armas sempre fizeram parte dos costumes ancestrais do povo, nunca tendo figurado como coisas restrita a determinadas castas, clãs, ou classes de pessoas, como no Japão feudal, quando havia samurais e apenas samurais aprendiam coisas de samurais, e por aí vai... As Artes Marciais Filipinas sempre foram coisa ligada à população daquelas ilhas, tanto que, em 2006, sua importância foi oficialmente reconhecida, quando se tornaram objeto de proteção pela chamada Lei do Arnis, que as define como patrimônio cultural do povo filipino.

Para dirimir dúvidas a respeito do Kali, não nos dispomos a defender posições de “comprovação”, de “superioridade”, ou a “debater” o assunto, pois polêmicas são desgastantes e inúteis em face dos fenômenos humanos. Todavia, chamamos a história, o tempo e os eventos como testemunhas. Acima de tudo, especialmente, convidamos aos leitores que acompanharam estas nossas singelas postagens a vivenciar o Kali, para que cheguem às próprias conclusões sobre tudo o que oferecem essas maravilhosas, embora ainda “desconhecidas”, Artes Marciais Filipinas.

Obrigado a todos!

Mabuhay!

R.Teixeira


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